quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Am-bu-lan-tes

Quase na maioria das vezes eles pedem desculpa por incomodar as nossas leituras, as nossas conversas e as nossas viagens.

Sim, precisamos falar sobre os ambulantes do metrô.

É que eu tenho tomado um pouco menos de metrô esses tempos, por motivos que não interessam agora.

Mas há uns bons meses é perceptível que aumentou a presença deles no metrô.

Abstraído no maravilhoso mundo da literatura confesso que eu me incomodei algumas vezes com vendedores nos vagões.

De repente uma voz sobressalta oferecendo algo que você não quer, não pode comprar e não precisa ou talvez possa, queira e precisa, vai saber.

É que do alto do meu conforto desta vida proletária classe C atrapalhava a minha leitura.

Mas daí eu parei para pensar. Uma voz que fala alto tentando me vender algo em um momento que eu estou fazendo outra coisa. Onde foi que eu vi isso antes?

Teria sido na TV, nos jornais ou nas revistas? Nos meios dos textos pela internet afora? Em banners, outdoors, relógios e pontos de ônibus? Talvez tenha sido antes, durante ou depois de um vídeo no Youtube ou vai ver é a cada três nos Stories no Instagram.

Ah, gente. Vamos lá, aula básica sobre como funciona o capitalismo, tá até no manual de como escrever uma boa redação para a Fuvest.

O capitalismo precisa de uma massa de desempregados pra garantir o lucro, porque é assim que a coisa funciona. Cortar gastos demitindo alguém que tem um salário “alto” e contratar outra pessoa pagando menos. É aquela velha história.

Brasil, crise financeira, desempregados, o povo precisando viver, botar comida em casa, boletos e etc. Acho que deu pra sacar qual é a ideia.

Num primeiro momento você se incomoda, né, com esse comércio ilegal do shopping trem. É uma disputa grande por espaço, sem falar que a oferta de produtos é excessiva.

Dia desses eu vi um pessoalzinho no Twitter comentando sobre isso.

Questão aqui é que o alvo tá errado. As pessoas que vendem bala fini, fone de ouvido, pendrive, lente pra selfie, pau de selfie, chocolate e afins são só... bem, pessoas. E estão dando duro e tentando fazer o melhor pra ganhar a vida, igual a qualquer um que não está naquela situação.

Então sei lá, fica aí a sugestão do exercício de empatia, solidariedade e expansão da mente e do ponto de vista. O trabalho dessa galera pode até te incomodar e você ficar morrendo de ódio, mais do que já morre de ódio na vida e no metrô paulistano. Mas ele não é tão diferente assim de toda a publicidade com a qual você já está acostumado, naturalizado e engole pacificamente.

No fundo essas pessoas não são tão diferentes de publicitários bacanas que ganham prêmios em Cannes. Sem falar que é um desperdício para o próprio sistema  que muitas delas não estejam em empregos formais. Há muita gente boa de lábia e criativa.

Lidar com uma série de adversidades e correr o risco constante de perder mercadorias em um jogo de gato e rato que não se esgota não é fácil e exige jogo de cintura, canela e esperteza. E tudo isso em nome de nada, daquele 1% sem rosto mais rico da população a quem esse corre corre no fundo protege e beneficia.

Então pessoal fica aí o reforço. A próxima vez que vocês sentirem raiva dos ambulantes no metrô, lembrem-se que na verdade esta raiva é do capitalismo e dos efeitos sociais que isto gera.

Beijos, paz e namastê.

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

The Clock


Eu sei que tá rolando a Mostra, que daqui a pouco tem MixBrasil e antes disso tem Satyrianas e Balada Literária, mas tentem colocar na agenda algumas horinhas para ver “The Clock” uma das coisas mais legais em cartaz/em exibição em São Paulo e com entrada gratuita no Instituto Moreira Salles.

Pude ficar só uma hora ontem, mas a experiência é muito legal e pretendo voltar em breve para passar mais um tempo lá.

“The Clock” é ao mesmo tempo um filme e um relógio. Para ser mais preciso, a obra é uma instalação de um artista chamado Christian Marclay. Ela é composta de pequenos trechos de outros filmes em que há um relógio em cena ou menção à hora equivalente. Desta forma a hora apresentada na tela está em sincronia com a hora da “realidade”.

A montagem traz material de cem anos de história do cinema, sobretudo americano.

São muitas cenas e é muita coisa para prestar atenção, mas peguei “Amélie Poulain”, “O Exorcista”, Al Pacino em dois filmes - um deles “O Advogado do Diabo” -, Debra Messing, Samuel L. Jackson e Ben Affleck, que eu sempre disse que seria um bom Batman.

Senti como meu repertório cinematográfico é limitado. Deu vontade de ir pra casa, assistir ao smilhões de filmes baixados, deu vontade de ficar ali, deitado/sentado por horas a fio, vendo o tempo passar na tela em milhões de referências para a vida.

Deu uma puta curiosidade de pensar como em tudo foi feito, no trabalho que deve ter dado para editar e no tanto de tempo que demorou para o filme ficar pronto. Deve ter sido muito. Há arte até no fazer e na concepção de uma obra coma essa.

O que eu mais gostei é que “The Clock” tem uma narrativa própria, que pode ser acompanhada de qualquer ponto e que pode ser abandonada em qualquer ponto, inclusive talvez seja interessante dedicar algumas horas para a contemplação. Ver o filme de madrugada ou de manhãzinha pode ser uma boa experiência.

Diversos aspectos do cinema podem ser entendidos ali. Direção de arte, direção de atores, fotografia, dramaturgia, montagem e sonoplastia. Foi muito legal, por exemplo, prestar atenção aos efeitos de sons de um filme de kung-fu em que cada soco e chute é acompanhado de um som totalmente artificial produzido num estúdio.

Para além de toda a fruição estética e intelectual da coisa, ter visto “The Clock” me pegou muito porque vem coroar um ano em que eu fiz uma série de cursos teóricos sobre as etapas de produção cinematográfica no Sesc Pompeia e que foram um bálsamo para a incerteza permanente e agoniante que é “o que é que eu faço agora?”.

Tem um texto bem bom que saiu na Folha sobre a instalação, aqui. Recomendo a leitura, mas depois da visita.

terça-feira, 17 de outubro de 2017

Vista parcial do dia

Pela janela a promessa de um dia gelado, nublado, feio e sem poesia.

Mas foi só sair de casa, vestindo a blusa de frio que o céu abriu.

Na verdade, uma parte do céu já estava azul antes mesmo de eu ir para a vida.

E o sol também já dava sua cara.

Eu é que não conseguia ver nada disso, porque estava limitado pela visão que me é possível.

Em quantas metáforas é possível pensar?

O quanto o nosso ser/estar no mundo não é limitado pelo lugar em que a gente está?

A previsão do tempo não era otimista nem mesmo no aplicativo do celular.

Quer dizer. Às vezes nem as melhores ferramentas dão conta do imprevisível.

E mesmo com todas as previsões contrárias fez sol.

Só não me arrependi de ter levado a blusa porque à noite esfriou.

Mas o boné, recém-adquirido dia desses, fez falta. E como fez.