sábado, 28 de dezembro de 2019

Joguinho

O protagonista de “A Arte de Produzir Efeito sem Causa”, do Lourenço Mutarelli, tem um joguinho mental quando anda na rua em que fica classificando as mulheres que cruzam seu caminho entre “como” e “não como”. Acho que dispensa explicações.

Além de trazer informações sobre o personagem, o joguinho também tem a função de imprimir ritmo à narrativa quando ela se dá em um fluxo de consciência.

É um romance muito hétero. Cheguei a falar isso para ele na confraternização do curso no ano passado.

Sempre lembro desse livro, sempre lembro desse jogo. Até porque antes de entrar em contato com essa obra eu mesmo tinha uma variação dessa mesma brincadeira, que nem é tão inédita assim na história do mundo. Tem aquele ótimo de chegar a um poste antes de o farol fechar para que você não morra ou mudar de direção cada vez que trombar com um semáforo fechado.

No meu caso, meu joguinho é o “chupo” e “não chupo”. Tem a ver com o homens na rua que cruzam meu caminho, mas como eu sou naturalmente safado meu joguinho não tem muita graça. O resultado é sempre “chupo”.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Síntese

A chuva fez subir a água podre do esgoto que não chegou a tempo de escorrer para o Tamanduateí e em decorrência disso os arredores do Mercado Municipal ficaram alagados.

As grandes poças em si nem seriam grandes problemas não fosse o terrível cheiro que tomou conta de toda a imediação.

Não houve quem não tapasse o nariz diante daquela quebra tão inesperada no ritual de compras para as festas dos próximos dias.

Era tão nojento o cheiro de coisas - sabe-se lá quais coisas - decompostas que era impossível ficar indiferente a ele.

Era um odor que impregnava o nariz, que contaminava o ar, que embrulhava o estômago e provocava até ânsia de vômito.

E era só o que faltava mesmo, vomitar nas proximidades de um dos cartões postais da cidade.

Mas a espécie humana e sua capacidade de adaptação nunca deixa de surpreender.

Ainda que o futum invadisse até mesmo o espaço do Mercadão, a vida não deixou de acontecer por causa disso. 

Carros cruzavam as ruas, pessoas tentavam se proteger da chuva como dava, aglomerando-se debaixo de toldos e marquises, compartilhando espaços restritos, dividindo o calor que emana de corpos molhados.

O comércio de queijos ia bem, apesar de o odor insistente prejudicar o paladar na hora de experimentar texturas e qualidades. 

Castanhas e frutas também eram vendidas em abundância, bem como peixes, carnes e afins.

Se antes da chuva o clima era de magia e alienação devido à proximidade da data, depois que ela passou o cheiro imprimiu a forte presença da realidade a todas as narinas ali. 

Não havia como escapar de nossos fracassos todos sintetizados naquela fedentina repentina. Não era possível camuflar mais nada. Más escolhas administrativas, ambientais e políticas resultaram naquilo. Aquele fedor era a mistura de todos nós.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Bate-estaca

À noite eu resolvo tomar uma pílula vermelha na esperança de que a vida melhore.

E antes que eu durma o Alginac faz efeito. Já não sinto mais a inconveniente dor de cabeça e o corpo parece até estar relaxando.

Até mesmo o incômodo no peito parece dar uma trégua.

O sono vem, embora não com tanta facilidade.

Acordo uma princesa, em decorrência do comprimido mágico.

Hoje tá melhor que ontem. Tirando o bate-estaca das reformas nas imediações.

O som ao redor não anda dos melhores.

É martelo, é lixadeira, é o carro do ovo com trinta ovos por apenas dez reais ou o carro do peixe limpamos na hora.

A cabeça às vezes parece que vai explodir com as batidas sem fim. 

Boa é a hora do almoço quando para um pouco a barulheira.

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Sobre certos desconfortos

Dias em que eu não acordo, eu perco o sono super cedo e não consigo voltar a dormir, para então sentir muito sono à tarde quando eu deveria estar no auge da produtividade.

Dias em que tem mais coisas para fazer do que horas disponíveis e as coisas se arrastam e o desemprego pesa. E Vênus está em Capricórnio e eu nem beijei na boca.

Dias em que o presente se estica, o sono não é suficiente pra dormir, descansar te cansa mais. A mente não para de inventar novas cobranças. Nunca é o suficiente, nunca está bom. Sempre pode melhorar, mas nunca melhora.

Dias em que as notícias são ruins, em que as boas novas são mentira. Não é nem questão de copo meio vazio. É que não há copo. Está estilhaçado.

O bom é que tudo passa. Uma hora haverá de passar. E mesmo assim ainda existem uns momentos bons.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Rascunho

Abro o caderninho de anotações. Poderia ser poético, mas aqui a poesia morre. A frase eu acabei de escrever, falando sobre o quanto a minha letra estava feia. É que eu estava testando umas canetas novas, ponta fina, coisa fina, mas minha letra ficou feia porque ela é muito porosa, mancha o verso da página quando a gramatura do papel é baixa.

Escrevo sem tentar colocar muito peso na mão e a leveza do ato faz com que os escritos se transformem em garranchos incognoscíveis. É que escrevo com uma fome, com uma ânsia como se eu fosse mudar o mundo. Uma escrita que é urgente porque ela luta contra uma ideia de fim, dos tempos, da memória, da própria vida. 

Não teve um lembrete que aproveitei para reciclar e fingir que é uma nova ideia. Apenas um rabisco, um rascunho esparso, uma observação aleatória em meio a observações não tão aleatórias. Listas sobre bastidores de processo criativo, destaques e detalhes que é de bom tom que não fiquem esquecidos.

É que escrever ajuda a fixar. É o que dizem.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Foco

Bom dia! (Espera a plateia responder). Primeiramente eu gostaria muito de agradecer a oportunidade de estar aqui falando com vocês. Muito obrigado mesmo pelo convite. Vocês não tem ideia do quanto eu fico feliz de poder compartilhar aqui um pouquinho do que eu sei.

A segunda coisa que gostaria de falar é que eu não entendi muito bem porque é que eu fui chamado pra vir aqui dar o meu depoimento. Quando a produção me ligou para me convidar eu sinceramente achei que fosse trote e desliguei na cara da pessoa. Mas a Mariana foi tão insistente nas ligações que eu finalmente acreditei que ela estava mesmo me convidando para vir aqui falar com vocês.

Mas por que é que eu estou falando isso mesmo? (Alguém sopra alguma coisa da plateia) Ah, sim. É verdade. Eu achei que fosse trote a ligação porque eu vim aqui para falar um pouco sobre esse assunto. Daí eu fiquei me perguntando. Deve ser algum tipo de pegadinha alguém querer que eu, justamente eu, fale sobre isso.

Por que é pegadinha?, vocês devem estar se perguntando aí agora neste momento.

Daí eu respondo que desde que eu me conheço por gente, todas as minhas lembranças são marcadas por exemplos claríssimos de falta de atenção. Na escola, por exemplo, eu sempre era a criança que pedia para a tia não apagar a lousa porque ainda não tinha dado tempo de copiar tudo. A tia esperava? Às vezes sim, às vezes não. Na maioria das vezes não esperava. Então. É que eu joguei tudo fora meus cadernos e materiais escolares dessa época da minha vida, mas se fosse possível voltar no tempo, vocês iam ver. Uma pena que não é possível voltar no tempo. Tanta coisa para a ciência descobrir ainda. Voltar no tempo só por meio da memória, da literatura, da ficção. Mas a gente torce para que o progresso científico um dia nos permita voltar atrás.

Mas por que é que eu estou falando isso mesmo? (Mais um sopro da plateia) E onde eu tava? Ah, sim. É verdade. Meus cadernos escolares na infância. Eu era a criança que sempre demorava mais para copiar o conteúdo da lousa. Daí na maioria das vezes a professora apagava tudo o que estava escrito para continuar escrevendo e eu ficava com buracos gigantescos no meu caderno que era do conteúdo que eu não tinha dado conta de copiar.

E esses buracos eram gigantes porque tinha outra coisa que eu não era bom não que era calcular quanto de espaço no meu caderno eu ia precisar para copiar um parágrafo que estava na lousa. Porque na lousa ficava ali, bonitinho o parágrafo de quatro linhas. No meu caderno ele ocupava a folha inteira. Então era uma coisa assim, cheia de páginas em branco, uns espaços que iam ficando, umas lacunas que eu só conseguia preencher quando pegava emprestado os cadernos dos colegas de sala. Eram bons tempos.

Dessa época também eu lembro que quando eu era criança eu levava a tarde toda para fazer a lição de casa. De um lado eu tinha mesmo muita lição, mas de outro eu enrolava. Enrolava muito. Enrolava demais. Tava lá aprendendo uma tabuada. De repente alguma vizinha ligava um rádio eu já embarcava naqueles pagodes, muito Raça Negra, Art Popular, Sampacrew, Molejo, Exaltasamba. E eu ficava lá, no mundo encantado das relações que terminavam e não davam certo. Dos amores que se iam.

Tinha outra coisa. Às vezes eu fazia a lição de casa de frente para a TV. Aí era aquela coisa, não fazia direito nenhuma coisa nem outra. Como você vai adivinhar o valor do quadradinho assistindo Chaves? E os filmes do Cinema em Casa. Tinha vezes que eram melhores que o da Sessão da Tarde. Por falar nisso, lembrei do Resgate de Jéssica, nunca mais eu vi esse filme. Preciso procurar para ver se encontro. Mas eu dizia. Nossa. Lembrei de mais um. Lambada, a Dança Proibida. Um filme que viria bem a calhar nesses tempos de queimada na amazônia. Não, porque vocês não sabem que o plot desse filme é o de uma indigena que vai para os Estado Unidos para uma competição de lambada para chamar atenção para a causa da preservação ambiental. É simplesmente fantástico e genial.

Mas eu dizia o que mesmo? Ah, sim. Dos deveres. Das lições de matemática. Por que essa obsessão de saber o valor do quadrado? No começo é o quadrado, depois é o X, mas o X é quando você é maior, naquela época ainda eram quadrados, bolinhas e triângulos. Muito mais lúdicos, mas também porque a gente não tinha entrado ainda no campo da geometria. Raio, hipotenusa, catetos, o raio que o parta isso sim.

Eu não devia estar falando isso assim pra vocês, porque vocês são jovens. A matemática ainda faz muito parte da vida de vocês. Tem muita fórmula de Baskhara pra vocês fazerem ainda. Muita equação de segundo grau. Mas tá vendo me perdi de novo. Tava falando isso tudo daqui, por que mesmo? Ah, sim. Lição de casa. De como eu me distraia. Meu jeito de fazer a lição de casa e por isso eu me distraia tanto e nunca terminava a lição cedo é que eu fazia o dever com uns bonecos do lado. Naquelas épocas eu gostava muito de brincar de bonequinho, também porque eu era menino e não podia brincar de Barbie, mas ainda assim eu tinha uma Xena, uma Batgirl que quebrava o galho, mas meus bonequinhos não tinham isso de gênero muito bem definido não e já naquelas épocas rolava umas pegações, umas relações homoafetivas entre eles.

E isso me lembrou também de uma paixões que eu tinha, umas paixões platônicas pelo menino mais popular da sala, pelos garotos mais velhos da escola, pelo Pierre Bittencourt em Chiquititas. Eu ficava beijando a parede, fingindo que tava beijando meus namoradinhos imaginários e por isso a lição ficava lá a ser feita até às nove, dez horas da noite quando surgia um gás ou minha mãe dava um chilique. Mas eu lembro dessa época que eu perdi a estreia de Beakman, porque não tinha acabado a lição antes de o programa começar. Liguei a TV antes de o programa acabar a ponto de ver os pinguins se despedindo do programa.

Mas o que eu ia dizer mesmo, puts, jura que eu levei esse tempo todo pra falar?, nossa, nem parece. Tá vendo, não podem me dar o microfone na mão que eu desato a falar. (Ri de algum gracejo da plateia) É. Tá vendo. É isso mesmo. Eu tava só começando, uma pena que já acabou. Mas tudo bem. Agora só pra concluir. É que eu comecei a contar essas histórias pra falar que não entendi muito bem de ter sido chamado para participar desse evento e falar justamente sobre foco.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Pausa

Precisei dar uma pausa hoje. Ainda que eu não tenha parado muito e tenha feito coisas. Ainda assim, decidi pegar um pouco mais leve comigo, mergulhar em algumas leituras que eu estava me devendo.

Engraçado como passa o tempo e não muda a mania de transformar isso aqui num diário. O exercício de escrever uma vez por dia, vamos ver quanto tempo vinga.

Eu estava há uns dias já sem jogar essas merdas viciantes no celular ou no tablet, mas hoje cabou que levantei tarde, resolvi uma pendência burocrática e me meti num jogo enquanto assistia ouvia uns videos no Youtube e no Spotify, porque agora eu dei até para ouvir podcasts. Não muitos, nem muito longos, mas já tô eu atolado de coisas para fazer e me entupo de mais uma.

Por isso que chego ao final do ano sobrecarregado, cansado e afins. Já que em termos de trabalho remunerado este mês está até agora surpreendentemente mais fraco, a ideia é aproveitar o tempo que tem.

Faltam dois episódios para terminar Jessica Jones, e toda vez que eu vejo Jessica Jones me dá muita vontade de rever Matrix. Então hoje eu vi Matrix, o primeirão, que fazia muito tempo que eu não via. Foi quase como ver pela primeira vez. Muita coisa ali que eu não lembrava.

Daí deu vontade de ver filmes do Ang Lee e me desperta a curiosidade de ver Speed Racer, que nunca vi graça no desenho e a série Sense 8 e fico me perguntando se vale à pena.

É que eu ando com o projeto de não começar coisas novas enquanto não terminar o que já comecei. Porque a gente vai se atolando de coisas e eu tenho isso de gostar de terminar as coisas iniciadas. É uma lei que criei para mim, que eu nem precisava seguir, mas eu gosto.

É bom terminar as séries e pensá-las também em algo se pode apreciar ao invés de algo que se consome para estar por dentro dos assuntos. A essa altura da vida já deu para perceber que o nosso tempo não é o tempo do capital, porque tem certas coisas que o capital quer que a gente consuma e certas coisas que não.

E acho que para um texto que nem seria, por enquanto tá bom, antes que eu comece a brisar mais do que deveria em mais um post que vai do nada para lugar nenhum.

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Tentativa

Entender o que acontece ao nosso redor às vezes requer um esforço que a gente nem reconhece que é possível.

A sessão de hoje na análise foi mais silenciosa do que de costume. E é engraçado pensar que muitas das vezes eu começo com um suspiro ou com a frase "hoje não tem muito pra falar". Já virou até meme.

Mas é que às vezes faltam palavras. Na verdade isso ocorre com mais frequência do que eu gostaria, mas se teve algo que eu andei aprendendo nos últimos tempos é a não ficar forçando muito a minha própria barra.

Se não tem o que falar, não fala, ou deixa a mente solta, deixa vir. É difícil aproximar o que se sente da linguagem verbal, por mais extenso que seja o nosso vocabulário.

Tem uns momentos que eu amo, que é quando sou perguntado se me sinto da forma a ou da forma b. Não é raro que eu me sinta da forma ab tudo junto misturado e embolado aqui no meio.

Nem sempre se tem sobre o que falar. Nem sempre se tem sobre o que escrever. Mas já que o exercício é escrever um pouco uma vez por dia, talvez escrever sobre não ter o que escrever já resulte na própria escrita. 

Não serão todas as tentativas que darão certo no final das conta. Fica aqui o registro de uma.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Empurrãozinho

O metrô ficou por tempo demais parado na estação Brigadeiro então eu decidi saltar ali mesmo já que a principio eu desceria na Trianon-Masp.

O meu destino ficava bem no meio do caminho entre as duas estações e eu só pensei: por que não?

Foi só deixar o vagão e dar os primeiros passos na plataforma para que o sinal indicasse que as portas se fechariam e a composição seguiria, enfim, o seu caminho. 

Já era tarde demais. Um pouquinho menos de ansiedade não faria mal. O tempo afinal nem estava contra mim naquele dia. Eu me encontrava adiantado, o que nem tem sido raro esses dias.

Aproveitaria então algo que eu estava ansiando já há algum tempo, o de testar outro caminho. Não que seria um trajeto desconhecido, já que aquela era a rota para casa.

O que eu faria era uma inversão de polaridade na rotina, trocar uma coisa não tão significativa para adotar com mais carinho a ideia das mudanças. 

Pensei no potencial metafórico de tudo isso e em como às vezes tudo que a gente precisa para testar uma coisa diferente no dia a dia é um metrô parado por tempo demais em uma estação. É quase como um empurrãozinho encorajador.

domingo, 1 de dezembro de 2019

Gugu

Não senti nada com a morte do Gugu. E não queria aqui dar uma de Henry Sobel x Gugu, mas meu negócio é que há um certo tempo eu venho formulando uma teoria de que chegamos onde chegamos por causa do que vivemos antes e o que vivemos antes foi Gugu Liberato.

Então toda essa comoção, todas essas homenagens, o espanto. Tudo isso me passou batido. Não me despertou muita coisa. Não é que eu não sinta condolências por quem sentiu sua perda, sinto. Mas é que para mim é meio difícil de desassociar Gugu de outros assuntos que andamos debatendo.

Quando Angela Davis vem ao Brasil, se diz chocada por estar sendo tão referenciada por aqui e fala que deveríamos olhar para Lélia Gonzales eu faço o exercício de procurar Lélia Gonzales. Não há quase nada dela tão acessível numa busca superficial. É preciso ir mais a fundo.

Lélia Gonzales morreu em 1994, alguns de seus trabalhos mais importantes são das décadas anteriores. Eu só estreei neste mundo em 1987. Quando Lélia morreu eu tava com 7 anos. E por aqueles períodos eu e o Brasil que me cercava estávamos diante da TV, acompanhando avidamente a guerra de audiência entre Gugu e Faustão.

A sensação que eu tenho é que enquanto uma parte do Brasil estava fazendo um esforço para libertar-se, a outra estava anestesiada. Não que tenha mudado muito, mas é que mesmo vindo de uma família onde metade das pessoas são negras, nunca discutiu-se sobre racismo em casa. Havia uma lacuna aí, de escopo, de articulação, de referenciais. 

Também não se falava sobre homofobia. E eu já sabia que havia algo de diferente comigo. E imitava o Pit Bicha e isso era engraçado e as pessoas riam e quando as pessoas riem elas gostam, né? É um sinal de que se está agradando quando se está fazendo as pessoas rirem. Alguém aí pensou em síndrome de bobo da corte? Mas eu também amava secretamente a Vera Verão.

Então tô aqui, fugindo do assunto, evocando memórias, lembrando dos bullyings sofridos por causa de Robocop Gay, uma música estranhamente progressista para a época, mas que às vezes ainda desce amarga tanto tempo depois, e que também era ferramenta para perseguições homofóbicas na infância, na escola ou na rua de casa.

Pode até parecer desarticulado tudo isso, mas de alguma forma se relaciona. Gugu é o privilégio branco, o establishment, a cara, o discurso e a ideologia do status quo. Assim como o Faustão, a programação ou o que se publica nos meios de comunicação de massa que do alto de suas torres de marfim se consideram réguas do mundo.

Também penso em Judith Butler, nas vidas precárias, nos quadros de guerra, nas vidas que são passíveis de luto. Penso em oitenta tiros que não causam o impacto que causa a queda de um forro de estuque, na desproporcionalidade da repercussão da morte de Ágatha Félix.

Enquanto cês lamentam a perda irreparável de Gugu a gente fica a chafurdar na lama, com os valores  de uma sociedade que gira em torno da branquitude, do racismo, da homofobia, do heterocispatriarcado.