domingo, 1 de dezembro de 2019

Gugu

Não senti nada com a morte do Gugu. E não queria aqui dar uma de Henry Sobel x Gugu, mas meu negócio é que há um certo tempo eu venho formulando uma teoria de que chegamos onde chegamos por causa do que vivemos antes e o que vivemos antes foi Gugu Liberato.

Então toda essa comoção, todas essas homenagens, o espanto. Tudo isso me passou batido. Não me despertou muita coisa. Não é que eu não sinta condolências por quem sentiu sua perda, sinto. Mas é que para mim é meio difícil de desassociar Gugu de outros assuntos que andamos debatendo.

Quando Angela Davis vem ao Brasil, se diz chocada por estar sendo tão referenciada por aqui e fala que deveríamos olhar para Lélia Gonzales eu faço o exercício de procurar Lélia Gonzales. Não há quase nada dela tão acessível numa busca superficial. É preciso ir mais a fundo.

Lélia Gonzales morreu em 1994, alguns de seus trabalhos mais importantes são das décadas anteriores. Eu só estreei neste mundo em 1987. Quando Lélia morreu eu tava com 7 anos. E por aqueles períodos eu e o Brasil que me cercava estávamos diante da TV, acompanhando avidamente a guerra de audiência entre Gugu e Faustão.

A sensação que eu tenho é que enquanto uma parte do Brasil estava fazendo um esforço para libertar-se, a outra estava anestesiada. Não que tenha mudado muito, mas é que mesmo vindo de uma família onde metade das pessoas são negras, nunca discutiu-se sobre racismo em casa. Havia uma lacuna aí, de escopo, de articulação, de referenciais. 

Também não se falava sobre homofobia. E eu já sabia que havia algo de diferente comigo. E imitava o Pit Bicha e isso era engraçado e as pessoas riam e quando as pessoas riem elas gostam, né? É um sinal de que se está agradando quando se está fazendo as pessoas rirem. Alguém aí pensou em síndrome de bobo da corte? Mas eu também amava secretamente a Vera Verão.

Então tô aqui, fugindo do assunto, evocando memórias, lembrando dos bullyings sofridos por causa de Robocop Gay, uma música estranhamente progressista para a época, mas que às vezes ainda desce amarga tanto tempo depois, e que também era ferramenta para perseguições homofóbicas na infância, na escola ou na rua de casa.

Pode até parecer desarticulado tudo isso, mas de alguma forma se relaciona. Gugu é o privilégio branco, o establishment, a cara, o discurso e a ideologia do status quo. Assim como o Faustão, a programação ou o que se publica nos meios de comunicação de massa que do alto de suas torres de marfim se consideram réguas do mundo.

Também penso em Judith Butler, nas vidas precárias, nos quadros de guerra, nas vidas que são passíveis de luto. Penso em oitenta tiros que não causam o impacto que causa a queda de um forro de estuque, na desproporcionalidade da repercussão da morte de Ágatha Félix.

Enquanto cês lamentam a perda irreparável de Gugu a gente fica a chafurdar na lama, com os valores  de uma sociedade que gira em torno da branquitude, do racismo, da homofobia, do heterocispatriarcado.

   

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