quarta-feira, 10 de junho de 2020

Processo de transformação de um texto

Fui um dos 12.982 inscritos no edital de emergência do Itaú Cultural e seguindo um roteiro já velho conhecido meu, fui um dos 12.782 que não foram contemplados pela premiação.

Como eu sabia que não ganhar era uma possibilidade, comprei a ideia da Raíra de que se não fosse escolhido, teria pelo menos um post novo para este blog.

Pois vim aqui contar um pouquinho como foi o meu processo. Fiquei sabendo do edital no dia que ele foi lançado, mas deixei para me inscrever no último dia. Sem problemas. Eu estava ruminando o texto em segundo plano na cabeça, então quando sentei para escrever o texto simplesmente saiu.

Quer dizer, mais ou menos.

Confesso que eu não sabia muito bem sobre o que iria escrever, ou como, mas quando peguei meu caderno, uma caneta e sentei para escrever, o negócio fluiu. Até demais. Eu tenho um pouco isso. Esse gosto, hábito, mania, tesão de escrever à mão. Era uma prática mais comum em tempos pré-pandêmicos, durante intervalos, uma espera em mesa de bar, momentos entre compromissos, no Sesc, na rua, na praça de alimentação do shopping depois do almoço.

Então eu escrevi uma versão de um texto, que depois digitei. Considero o digitar uma espécie de reescrita onde geralmente reelaboro o que não ficou tão bom no papel. O resultado tomou a forma que reproduzo abaixo:


"Então, após uma sucessão infinita de infinitos hojes, voltar. Ou seria “seguir” a palavra mais adequada?

Repetir, depois que tinha parecido a própria eternidade, aquele trajeto de outrora.

Outrora. Gostava daquela palavra que remetia a outros tempos, tempos estes anteriores àquele em que o mundo tinha virado de cabeça para baixo.

Já há muito tempo que esperava aquela ligação. Ei, tu pode vir hoje? Tá livre? Tô. Ok. Pra entrar às duas, tá? Beleza. Obrigado de chamar.

E então lidar de novo com aquela euforia que vai do coração ao queixo, tomar um banho, preparar alguma coisinha para comer na pausa. Mandar uma mensagem no Whatsapp para as amigas, com quem compartilha detalhes da rotina, contando que foi chamado para um dia de frila, “hoje tem evento”, “graças a deus”, “tô cansado, mas precisando do dinheiro”.

E voltar aos preparativos. Colocar a camiseta e a calça jeans, mesmo com este calor, mesmo depois de todo o vírus, porque trabalhar de bermuda não pega muito bem.

Tomar o metrô e descobrir naquele percurso um novo sabor, o da retomada de coisas que mudam permanecendo as mesmas e das coisas que permanecem iguais mas que se transformaram de um jeito difícil de explicar, captar ou apreender muito bem como.

Durante o trajeto pensa o ar, como se este estivesse mais denso e era isso que tornava os cumprimentos tão desajeitados. Como se agora tivesse que aprender uma nova língua, comunicar os afetos de outro jeito, inventar uma nova gramática, reaprender o que fazer com as mãos, o quanto abrir os braços, qual a velocidade ideal de um aceno de mão de distante. Porque se for muito efusivo pode demonstrar muita afetação e o que os outros vão pensar? Uma alternativa melhor seria aquele toque de cotovelos que surgiu antes de todos os eventos serem suspensos e havia especialistas dizendo na televisão que o ideal eram as palmas das mãos coladas em posição de Namastê ou a leve reverência curvando o tronco para a frente como fazem no Japão.

Uma bobagem essas novas etiquetas quando o metrô continua cheio do mesmo jeito."

Pois bem. O edital pedia 800 caracteres, contando espaços, que é praticamente nada. A primeira versão tinha 2.035. Para um texto deixado para a última hora, era relativamente bastante.

Fiquei na dúvida entre jogar fora e fazer outro ou trabalhar nele mesmo. Optei pela segunda alternativa. Então começou a operação edição. Cortes. Como sintetizar o texto e as ideias e manter uma essência?

Como abrir mão de frases ou trechos que me agradavam bastante? Passar a tesoura, praticar o desapego e ainda assim tentar chegar a um resultado minimamente satisfatório?
 
Fui ouvir meus áudios de Whatsapp e ler os comentários durante este processo de enxugamento. É um corta daqui, corta dali. Entendi que estava diante de um exercício de concisão. Foi um desafio fazer. Fui derrubando parágrafos e eliminando artigos. O primeiro corte significativo cheguei a 1078 caracteres. Então cheguei a 974. Depois 907, 871. Nessa hora eu fiquei pirando. Até então achava que o mais difícil seria escrever.

Cheguei a 802 caracteres. Dois acima do que o concurso exigia. Ainda precisava fazer caber. 791. Parecia ok. Duas pequenas modificações que resultaram em 796 caracteres. Inclui então um “as” em “as palmas das mãos” e daí cheguei aos 799 caracteres que compartilho com vocês a seguir:

"Após infinitos hojes, voltar. Repetir, depois do que tinha parecido a eternidade, o trajeto de outrora.

Já há muito que esperava aquela ligação. Tu pode vir hoje? Posso. Pra entrar às duas, tá? Beleza. Então lidar de novo com aquela euforia boa de correr pra dar tempo. Tomar banho, cozinhar. Vestir a calça, mesmo com o calor, mesmo depois do vírus. Bermuda não pega bem.

Notar no caminho o ar mais denso e perceber como isso fazia os cumprimentos tão desajeitados. Era preciso outro jeito de se comunicar, descobrir o que fazer com as mãos, o quanto abrir os braços, a velocidade de um aceno. Alternativa seria o toque de cotovelos e dizem na TV que ideal eram as palmas das mãos coladas em posição de Namastê. Ou a reverência que fazem no Japão.

Etiquetas bestas. O metrô continua cheio como antes."


Ainda tive que fazer uma minibio onde eu dizia que sou de capricórnio com ascendente em áries e lua em aquário antes finalizar o envio.

Agora eu quero ler outros textos do concurso. Quer tenham sido contemplados, quer não.

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