segunda-feira, 11 de maio de 2020

Como ganhar um edital

É uma questão que eu tô me perguntando desde que vi que um edital de emergência para a área da literatura foi lançado por uma importante instituição cultural.

Hoje foi o primeiro dia de inscrição, que vai até quarta e eu não escrevi uma linha de nada por causa do tema: a vida pós-pandemia.

Minha inércia tem uma boa razão de ser. Estou completamente tomado pelo pessimismo. Ou talvez eu seja bom nisso de arrumar desculpas para mim mesmo.

Tudo que eu consigo pensar sobre vida pós-pandemia é que por mais que iniciativas pontuais e bacanas de solidariedade tenham aparecido, tem muita gente escrota no mundo.

E o mundo, como sabemos, já passou por muitas crises e estamos onde estamos por tudo que fizemos antes, durante e principalmente depois delas. Não melhoramos depois da escravidão, do nazismo, da crise espanhola, da epidemia de hiv, do 11 de setembro ou da boate kiss.

Não há luz num horizonte próximo. Pelo menos nada assim que eu consiga mensurar. Não deixaremos de acreditar nas ficções que são o dinheiro e a economia e não conseguiremos inventar um novo modo de viver, simplesmente porque nem tentaremos.

Porque falta adesão à vontade de mudar o mundo. A gente nem acredita mais que isso é possível.

Porque agora, que é agora, a gente não liberou as faxineiras e as pessoas mais precarizadas não estão ficando em casa - às vezes nem casa têm para se ficar. Como é que se pensa um pós, um futuro, quando o presente é altamente incerto e desemprego, falta de propósito e desigualdade se acentuam?

Que tipo de ficção é possível de ser inventada num cenário como esse? Que tipo de ficção tem chances de ganhar um edital? Oras, você não é escritor, inventor, criativo? Pois, crie!

Neste momento, pensar em futuro me faz oscilar. Na vida, de modo geral, pensar em amanhã só me dá vontade de chorar na cama prostrado em posição fetal. Se, por um acaso eu conseguir até lá pensar em algo para o edital, será para chorar as pitangas de um mundo cada vez mais injusto e cada vez pior.

Uma epidemia que não serviu de nada para tirarmos algum tipo de lição, porque enquanto ela está acontecendo há marmanjos na rua da casa do Lucas empinando pipa.

Por outro lado, acho que pra ganhar um edital, talvez o segredo seja investir em uma narrativa mais edificante, mais bonitinha, mais conforme dizem especialistas das novas etiquetas que surgirão. Mais como foi a capa do Segundo Caderno d’O Globo de Sábado. E eu que já não suportava etiquetas terei que conviver com novas.

A imagem que me vem desse futuro pós-pandemia é a daqueles desenhos que ilustram o céu em folhetos das Testemunhas de Jeová, em que crianças multiétnicas brincam com leões e tigres num cenário de relva verde, lagos e árvores frutíferas.

Vou descrever uma dessas. Pintar em 800 caracteres essa paisagem idílica. Vai que assim eu sou contemplado.

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